sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Margens

Estou amando até os dentes
Esta desmelancolia prateada
Que vem de um sorriso qualquer
Negro num dia sem trem.

Estou armado de poesia
Contra tudo que se chama
Medo ignorância insigniplicância
Que proclama, mas policia o sol.

Estou recomeçado e branco
Inverso ao me filiar ao vento
Sem o sexo frio da culpa
Pardopnaptopsia gótica da noite.

Estou estando e sereno
Somado aquilo da raça
A me ver merecer transar
A minha caleidoscopia.

Estou na quinta estrofe
Sem pai nem mãe no mundo
Agradeço a quem traduzir
Meu mergulho no mar.




Poema que escrevi no ano de 1990. Era uma fase fértil, muito em virtude dos encontros com os outros poetas do Boato e da possibilidade de participar do CEP 20.000, evento que, nessa época, dava os seus primeiros passos. Nunca me reconheci inteiramente na sua primeira pessoa. Hoje vejo que ele foi composto de fragmentos autobiográficos que se somaram a uma voz inventada, Um poema para ser declamado por um personagem que traz uma série de perspectivas visuais e o relato breve de uma trajetória. Feito o poema, fortuitamente encontrei o Chacal no Baixo Gávea, que me contou estar às voltas com a feitura de um fanzine reunindo versos da nova geração que estava iniciando no CEP 20.000, e que a minha contribuição seria bem vinda. Na sequência lhe dei o poema, ainda sem nome, que foi muito bem recebido pelo mestre, que achou graça nos neologismos "desmelancolia", "insigniplicância" e "pardopnaptopsia". Essas palavras estranhas e incompreensíveis, que se afinam com a palavra "caleidoscopia" utilizada na quarta estrofe, foram absolutamente gratuitas na composição do poema e a ele serviam justamente por não portarem significado algum. O mais importante nelas sempre foi o seu som e a cadência com que se casavam com as outras palavras no arranjo expressional e rítmico de sua sintaxe. Recentemente até ensaiei alguns significados a elas, mas sequer tomei nota e assim nem concluí a tarefa. Mas, voltando à história, o poema, então, foi publicado no fanzine junto a pequenas reproduções do rosto de Jimi Hendrix e vê-lo circular nas rodas de poesia ao lado de outros versos de outros poetas que sequer conhecia foi motivo de muita satisfação. Passei, então, a recitá-lo, tanto individualmente quanto nas apresentações do Boato. Sua boa recepção, a cada récita, fez com que o poema seguisse por um bom tempo como uma das peças principais do meu (pequeno) repertório de intérprete de poesia. Nove anos após o surgimento do poema, e ele ainda sem nome, em 1999, recém-desvinculado do Boato, o apresentei no aniversário do CEP 20.000 na Casa França Brasil. O evento foi gravado e o poema falado por mim selecionado para figurar num CD lançado em 2000 pela Revista Trip com material poético e musical relativo ao CEP. Uma coletânea muito bem concebida e realizada, e ainda acompanhada de um excelente trabalho gráfico. Sem saber o nome do poema - e eu também não sabia - e tampouco o meu número de telefone, os realizadores do CD o chamaram de "Amando até os dentes, armado de poesia" e assim ficou. Em 2003, convidado pela adorável Fernanda Dedavid, fui participar de um programa de televisão sobre poesia produzido por estudantes da Faculdade de Comunicação da UFF. Falei o poema diante das câmeras e, na ocasião, a assistente técnica do programa - que era de Campinas e que acabara de chegar a Niterói para estudar - surpreendentemente o sabia de cór e o recitou inteiro para mim. Ela havia comprado a revista com o CD e curtiu muito o poema, a ponto de memorizá-lo. A gravação mais tarde rendeu outros frutos, como a presença do poema num dos programas da Radiocaos e a sua inventiva desconstrução num inventivo mixtape de Tiago Malta. Com ela também, acredito que através de seu conhecimento pelo CD da Trip, o poema encontra-se disponível em vários blogs de poesia e ainda foi feito um vídeo caseiro por um autor de minha parte desconhecido. Não há crédito ao meu nome no pequeno filme que figura um sujeito recitando o poema com sotaque pernambucano enquanto caminha ao sol e a câmera, por sua vez, a seguir os passos de sua sombra. O vídeo (aqui anexado), como podemos ver, está disponibilizado no You Tube. Curioso é que a versão inicial do poema, tal como foi gravada no CD da Trip, continha o verso esdrúxulo "Pintou legal merecer transar", que tanto nos blogs quanto no filme aparece como "Um pintor legal merecia transar". Penso que assim foi ouvido no CD e reproduzido em seguida. O verso em questão, que sempre me incomodou, foi substituído posteriormente por "A me ver merecer transar". Finalmente, ao ser incluído em Carnicidades, com a missão de abrir o livro, dei o título de "Margens" ao poema por reconhecer na sua voz uma trajetória excêntrica. 

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