domingo, 30 de dezembro de 2018

Minto

Minto

Não sinto meu corpo despedaçar-se
Não sinto meus olhos arderem
Não sinto aflorar a poesia
Na alvorada limonada suíça
Apartamento maloca oca
Lâmpada acesa
Tento o tempo
Atento à minha presa
Não sinto derramar os absurdos
Bocados de achados meticulosos.

Minto
Verdade é que sinto.

Sou da geração que se encantou com Cazuza cantando "mentiras sinceras me interessam". Isso quando não havia internet e tampouco o conceito de fake news.

Hoje, ao ler esse poema escrito no fim dos anos de 1980, penso no "fingir" de Fernando Pessoa. No entanto, não tenho em minha memória essa referência específica na sua fatura, embora a influência do poeta português tenha sido decisiva na minha adolescência. Bem cedo devorei uma antologia que pertencia à minha mãe e com a dedicatória de meu pai, possivelmente um presente dado a ela na época do noivado de ambos, nos anos 60. Achava que Fernando Pessoa era alguém da família, um parente distante d'além mar. Quando o li, pude sentir algo mais essencial que um parentesco de sangue. Difícil definir com palavras, mas o termo "espiritual" cabe bem aqui. Com Pessoa iniciei minha vida do espírito. Percebi a possibilidade de ser outro e que o "eu" podia ser nada mais nada menos do que uma construção - uma autopoiese. Era apenas um prazer de mocidade ter esses pensamentos ou poder tê-los. Mas se tratava de um prazer fundamental, na época muito mais intuído e sentido do que posto à luz da consciência.

Recentemente tive a oportunidade de lecionar em algumas aulas do PARFOR - Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica - na UFRRJ, campus de Nova Iguaçu. Minha tarefa foi introduzir Fernando Pessoa para as alunas do curso, todas mulheres, professoras do ensino básico em busca de reciclagem e conhecimentos novos. Fiz bem o dever de casa, selecionei os poemas e estudei o brilhante ensaio do Benedito Nunes sobre Pessoa. O aprendizado foi intenso, o delas e o meu, posto entre leituras e releituras. A leitura em voz alta de Álvaro de Campos que fizemos juntos foi uma das melhores experiências que até aqui tive como professor.

Mas, voltemos ao poema, o que me chama a atenção é o fato dele ser todo no negativo, amparado pela repetição do "não", tendo apenas como exceção uma falsa positividade, a negação da negação, na sua conclusão. O fechamento do poema - que tende a ser um oximoro - lembra o debate sobre Oswald de Andrade ter ou não se utilizado da "chave de ouro" em seus poemas telegráficos. "Minto" talvez tenha algo de Oswald nas suas imagens, embora essas teriam sido bem minhas, ou pelo menos pensadas por mim. "Minto" fala do poeta em progresso e da solidão que o acompanha. Uma lembrança esparsa que vem agora é de tê-lo escrito de madrugada no pequeno apartamento em Botafogo em que eu vivi com minha mãe e minha avó, sentado numa velha e surrada escrivaninha após ter passado o dia inteiro na praia, ou mais precisamente, no mar. Daí o verso "meus olhos arderem" ser do efeito das lentes de contato por muitas horas expostas ao sol e ao sal. Prezo bastante a sonoridade de "Minto". Não apenas pelas rimas, mas pelo uso musical de suas vogais abertas. Foi um poema que logo decorei para ser falado em público, e o fiz muitas vezes, tanto no Boato quanto em apresentações solo.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Identidade

Sou o poema
o oco das formas
anjo barroco
mito.

Minto
a ela ideia
tê-la
mentira
ideia-tela:
cinema.

Na lua cheia
ilumino os amantes.

No breu
brincante e luz dos loucos.

Vivo 
nas linhas tortas de Deus
e na rota mordaz das quimeras.



Esse poema me reporta a uma fase em que eu estava escrevendo poemas para serem declamados no palco. O personagem, nesse caso, é o próprio poema, que se identifica enquanto tal. Poema que se oferece aos ouvidos e aos afetos. Poema que se vê na sua ambiguidade de ser. Lúdico desde a sua origem. Me chama a atenção o "minto/a ela ideia", como se quisesse subverter algo que viesse do racional e me entregasse ao fluxo das palavras, mesmo que breve e conciso. "Identidade" nasceu formado e posteriormente foi pouco trabalhado. Me recordo apenas de ter trocado apenas a última frase, que já foi escrita de vários modos até chegar à forma final publicada em Carnicidades. Apesar de ter sido um poema composto para ser falado em público, pouco me lembro dele ser encenado. Sei que foi algumas vezes, mas sempre lido. Nunca o decorei. Sua forma escrita sempre esteve presente em toda coletânea que pensei em fazer antes da publicação de Carnicidades.  Gosto do poema, talvez porque me identifique com ele, daí também ele ter recebido o nome "Identidade", Uma fantasia. Como um autorretrato em palavras. Um fotograma na sua aparente simplicidade, porém reveladora e sugestiva.  

sábado, 28 de novembro de 2015

Apetência

Quero fazer poesia assim:
Amarela, laranja, roxa...
Me meter nas tuas coxas,
Dizer ao mundo que vim.

Para namorar sua fantasia,
Risco nomes no papel.
Registro aquela nossa alegria
Numa nuvem dourada no céu.

Menina Bonita,
Poema Rimado.
Na frente, a marmita.
O banquete, ao lado.


"Apetência" é poema que só ganhou esse nome em função de sua publicação em Carnicidades. Não me recordo se fiz o poema para ser falado, mas ele se prestou (e se presta) bem a isso. O poema por muito tempo chamou-se "Quero fazer poesia assim", tal qual o seu primeiro verso. Muitos poemas meus nasceram sem título e vários dos que foram publicados no livro ganharam título durante o processo de sua edição, caso desse poema. O recitei muitas vezes em eventos de poesia, tanto sozinho quanto com o Boato. O vídeo aqui disponibilizado foi de uma apresentação no Cabaret da Poesia, evento apresentado pelo poeta Cairo Trindade, em 2011. Penso que o poema contém, na sua terceira e última estrofe, aquela passagem do lugar comum para o lugar incomum, própria da conceito de literariedade. Deve ter sido influência de minhas leituras de poesia, pois só depois de muito tempo a reconheci na teoria de Viktor Chklovski. O poema tem nas suas três estrofes três atos distintos. Começa com uma epígrafe confessional que lança o poeta no mundo. A segunda estrofe é um trecho propositadamente ingênuo, literatura menor, ou menos ainda, como "batatinha quando nasce esparrama pelo chão". Quase infantil, uma brincadeira, mas que aponta para uma metafísica. Finalmente, a terceira estrofe, conclusiva, mostro a oposição entre "marmita" e "banquete", esse último aludindo também ao diálogo platônico. Física e metafísica, concreto e abstrato, se misturando a metáforas possíveis, mas sem a intenção de serem indicadas claramente. 

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Margens

Estou amando até os dentes
Esta desmelancolia prateada
Que vem de um sorriso qualquer
Negro num dia sem trem.

Estou armado de poesia
Contra tudo que se chama
Medo ignorância insigniplicância
Que proclama, mas policia o sol.

Estou recomeçado e branco
Inverso ao me filiar ao vento
Sem o sexo frio da culpa
Pardopnaptopsia gótica da noite.

Estou estando e sereno
Somado aquilo da raça
A me ver merecer transar
A minha caleidoscopia.

Estou na quinta estrofe
Sem pai nem mãe no mundo
Agradeço a quem traduzir
Meu mergulho no mar.




Poema que escrevi no ano de 1990. Era uma fase fértil, muito em virtude dos encontros com os outros poetas do Boato e da possibilidade de participar do CEP 20.000, evento que, nessa época, dava os seus primeiros passos. Nunca me reconheci inteiramente na sua primeira pessoa. Hoje vejo que ele foi composto de fragmentos autobiográficos que se somaram a uma voz inventada, Um poema para ser declamado por um personagem que traz uma série de perspectivas visuais e o relato breve de uma trajetória. Feito o poema, fortuitamente encontrei o Chacal no Baixo Gávea, que me contou estar às voltas com a feitura de um fanzine reunindo versos da nova geração que estava iniciando no CEP 20.000, e que a minha contribuição seria bem vinda. Na sequência lhe dei o poema, ainda sem nome, que foi muito bem recebido pelo mestre, que achou graça nos neologismos "desmelancolia", "insigniplicância" e "pardopnaptopsia". Essas palavras estranhas e incompreensíveis, que se afinam com a palavra "caleidoscopia" utilizada na quarta estrofe, foram absolutamente gratuitas na composição do poema e a ele serviam justamente por não portarem significado algum. O mais importante nelas sempre foi o seu som e a cadência com que se casavam com as outras palavras no arranjo expressional e rítmico de sua sintaxe. Recentemente até ensaiei alguns significados a elas, mas sequer tomei nota e assim nem concluí a tarefa. Mas, voltando à história, o poema, então, foi publicado no fanzine junto a pequenas reproduções do rosto de Jimi Hendrix e vê-lo circular nas rodas de poesia ao lado de outros versos de outros poetas que sequer conhecia foi motivo de muita satisfação. Passei, então, a recitá-lo, tanto individualmente quanto nas apresentações do Boato. Sua boa recepção, a cada récita, fez com que o poema seguisse por um bom tempo como uma das peças principais do meu (pequeno) repertório de intérprete de poesia. Nove anos após o surgimento do poema, e ele ainda sem nome, em 1999, recém-desvinculado do Boato, o apresentei no aniversário do CEP 20.000 na Casa França Brasil. O evento foi gravado e o poema falado por mim selecionado para figurar num CD lançado em 2000 pela Revista Trip com material poético e musical relativo ao CEP. Uma coletânea muito bem concebida e realizada, e ainda acompanhada de um excelente trabalho gráfico. Sem saber o nome do poema - e eu também não sabia - e tampouco o meu número de telefone, os realizadores do CD o chamaram de "Amando até os dentes, armado de poesia" e assim ficou. Em 2003, convidado pela adorável Fernanda Dedavid, fui participar de um programa de televisão sobre poesia produzido por estudantes da Faculdade de Comunicação da UFF. Falei o poema diante das câmeras e, na ocasião, a assistente técnica do programa - que era de Campinas e que acabara de chegar a Niterói para estudar - surpreendentemente o sabia de cór e o recitou inteiro para mim. Ela havia comprado a revista com o CD e curtiu muito o poema, a ponto de memorizá-lo. A gravação mais tarde rendeu outros frutos, como a presença do poema num dos programas da Radiocaos e a sua inventiva desconstrução num inventivo mixtape de Tiago Malta. Com ela também, acredito que através de seu conhecimento pelo CD da Trip, o poema encontra-se disponível em vários blogs de poesia e ainda foi feito um vídeo caseiro por um autor de minha parte desconhecido. Não há crédito ao meu nome no pequeno filme que figura um sujeito recitando o poema com sotaque pernambucano enquanto caminha ao sol e a câmera, por sua vez, a seguir os passos de sua sombra. O vídeo (aqui anexado), como podemos ver, está disponibilizado no You Tube. Curioso é que a versão inicial do poema, tal como foi gravada no CD da Trip, continha o verso esdrúxulo "Pintou legal merecer transar", que tanto nos blogs quanto no filme aparece como "Um pintor legal merecia transar". Penso que assim foi ouvido no CD e reproduzido em seguida. O verso em questão, que sempre me incomodou, foi substituído posteriormente por "A me ver merecer transar". Finalmente, ao ser incluído em Carnicidades, com a missão de abrir o livro, dei o título de "Margens" ao poema por reconhecer na sua voz uma trajetória excêntrica. 

Breve apresentação




Meu avô materno, Asclepíades, que portava o nome de um poeta grego do século III a.C., me ensinou a ler quando eu tinha apenas três anos de idade, antes mesmo de ir à escola. Com umas letras grandes de cartolina, ele me iniciou para que eu pudesse ouvir os sons e formar as palavras. Penso que esse é o sentido deste livro. Uma pequena antologia dessa prática de formar (e transformar) palavras, assim como a de verter e subverter frases inteiras em sua sintaxe, o que tempos depois comecei a chamar de poesia, a enigmática pele. Quase todos os poemas aqui apresentados são versos de juventude, escritos a partir das minhas experiências sensoriais com o mundo. São versos livres que flertam vez ou outra com a prosa poética. Poemas para serem lidos e sonorizados.